quarta-feira, 8 de junho de 2011

O casamento

Luis Fernando Verissimo

— Eu quero ter um casamento tradicional, papai.

— Sim, minha filha.

— Exatamente como você!

— Ótimo.

— Que música tocaram no casamento de vocês?

— Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn o d a Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.

— Mendelssohn, Mendelssohn... Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele ai.

— Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo.

— O nosso não vai ter órgão, é claro.

— Ah, não?

— Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia.

O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei, não...

— É, acho que no sintetizador não fica bem...

— Quem sabe alguma coisa do Queen...

— Quem?

— O Queen.

— Não é a Queen?

— Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.

— Ah, certo. O Queen. No sintetizador.

— Acho que vai ser o maior barato!

— Só o sintetizador ou...

— Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...

— Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.

— Isso.

*

— Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom. Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro de Varum?

— Eu sabia...

— O quê?

— Que você já ia começar a implicar com ele.

— Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.

— Eles nem casaram e você já está implicando.

— Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça.

Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.

— É um belo rapaz.

— E eu não sei? Há quase um ano que ele frequenta a nossa casa diariamente. E como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?

— E o apelido e pronto.

— Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.

— Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você fica.

— Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.

*

— Aí xará!

— Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce. Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...

— Essa noivinha...

— Vocês vão ao cinema?

— Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.

— Acampar? Só vocês dois?

— É. Qual é o galho?

— Não. E que... Sei lá.

— Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.

— É! Você sabe como é...

— Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode pintar um lance.

— No mínimo isso. Um lance. Até dois.

— Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Ôi, gatona!

— Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?

— Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.

— Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.

— Só não dou o meu grito para proteger os cristais.

— Vamos?

— Vamlá?

— Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?

— De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.

*

— Descobri por que ele se chama Varum.

— O quê? Você quer alguma coisa?

— Disse que descobri por que ele se chama Varum.

— Você me acordou só para dizer isto?

— Você estava dormindo?

— É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não dormiu?

— Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.

Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma gatona. Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.

— Então é isso que está preocupando você?

— E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo.

A gatona é sua também.

— Mas não tem perigo nenhum!

— Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato?

— O que é que pode acontecer?

— Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.

— Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um sapo na tenda.

— Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco.

— Vai dormir.

— Gatona. Minha própria filha...

— Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.

— Eu prefiro não ouvir.

— Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um apelido.

— Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.

— Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.

— Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria estava ruim. Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado.

— Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!

— Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.

— Não levou porque meu pai matava você.

— Hmmmm.

— “Hmmmm” o quê?

— Você me deu uma idéia. Assassinato...

— Não seja bobo.

— Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...

— O que você tem é ciúme.

— Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono.

— O quê?

— Será que ele tira o capacete para dormir?

*

— Bom dia.

— Bom dia.

— Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.

— Maria Helena... Ah, a Gatona!

— Essa.

— Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?

— Não, Padre Osni. E que...

— Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.

— Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca um rock e a noiva entra dançando, é isso?

— É. Um rock suave. Não é rock pauleira.

— Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.

— Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente. É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir com os tempos.

— Claro. Mas, Padre Osni...

— Tuco.

— Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?

— Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?

— Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...

— Ensaie, ensaie.

— Certo.

— Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.

— Claro.

— Não é rock pauleira.

— Certo. Um roquezinho suave.

Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.

*

— Você está nervoso, papai?

— Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma semana a mais de ensaio. Só uma semana.

— Eu estou bonita?

— Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.

— Mas eu estou pronta.

— Você vai se casar assim?

— Você não gosta?

— É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...

— Não é um barato?

*

— Um brinde, xará!

— Um brinde, Varum.

— Você estava um estouro entrando naquela igreja. Parecia um bailarino profissional.

— Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.

— Muito bem!

— Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.

— Do quê?

— Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.

— Bota tempo nisso.

— Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia levei no...

— Tinha um quê?

— Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.

— Ah.

— Esquece.

— Um brinde ao sogro bailarino.

— Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.

— O que é que você achou da minha beca, cara?

— Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de capacete...

— Vacilou.

— Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.


Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto Alegre, 1982, pág. 13-18.

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