Luis Fernando Verissimo
– De vez em quando eu penso neles...
– Quem?
– Nos espermatozoides...
– De vez em quando você pensa em seus espermatozoides?
– No meus, não. Nos do meu pai.
– Você está bêbado.
– Na noite em que fui concebido... Suponho que tenha sido uma noite... Eu era um entre milhões de espermatozoides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seria bilhões?
– Acho que é óvulo mesmo.
– Não. Os espermatozoides. São milhões ou bilhões?
– Ahn... Não sei.
– Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isso é mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozoides junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
– É.
– Você acha mesmo?
– Acho.
– Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
– Amendoim?
– Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
– É como você diz. A gratuidade da coisa.
– Não, não. Isso que estou bebendo.
– É, ahn, uísque.
– Uísque. Pois então. Aí está.
– Ó Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
– Um brinde!
– Um brinde.
– A eles!
– Quem?
– Aos espermatozoides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
– Aos meus irmãos!
– Meus irmãos. Você não estava lá.
– Aos seus irmãos!
– Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
– Salve.
– Agora me diga uma coisa.
– Duas. Digo duas.
– Cada espermatozoide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozoide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
– Depende.
– Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras ideias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
– Não vamos exagerar...
– Então, imagina o seguinte. Pense bem. Amendoim.
– Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
– Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozoides que me acompanharam, e que não chegara ao óvulo, estava o cara que ia descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?
– Certo.
Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou podia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
– Acho que você está sendo radical.
– Não. Imagine se em vez do espermatozoide que se transformou no Jânio Quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil seria completamente diferente! É ou não é?
– Mais ou menos.
– Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu devia, sei lá.
– Ter feito mais da minha vida. Em honra a eles. Eu estou representando milhões, bilhões de espermatozoides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
– E se fosse um bandido?
– Como?
– Se, em vez de você, o espermatozoide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caráter. Não quero falar dos espermatozoides do seu pai, mas num grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maça negra. Estatisticamente.
– Você acha mesmo?
– Acho.
– Sei lá.
– E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
– Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...
– Marco Antônio...
– Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
– Bom, eu tenho 11 irmãos.
– Aí é diferente.
– Por quê?
– Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozoides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
– É uísque.
– Não. É a gratuidade da coisa.
– Não sei...
– Você está bêbado.
Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto Alegre, 1982, pág. 19-22.
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