quarta-feira, 8 de junho de 2011

Irmãos

Luis Fernando Verissimo

– De vez em quando eu penso neles...

Quem?

– Nos espermatozoides...

– De vez em quando você pensa em seus espermatozoides?
– No meus, não. Nos do meu pai.

– Você está bêbado.

– Na noite em que fui concebido... Suponho que tenha sido uma noite... Eu era um entre milhões de espermatozoides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seria bilhões?

– Acho que é óvulo mesmo.

– Não. Os espermatozoides. São milhões ou bilhões?

– Ahn... Não sei.

– Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isso é mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozoides junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?

– É.

– Você acha mesmo?

– Acho.

– Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.

– Amendoim?

– Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?

– É como você diz. A gratuidade da coisa.

– Não, não. Isso que estou bebendo.

– É, ahn, uísque.

– Uísque. Pois então. Aí está.

– Ó Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.

– Um brinde!

– Um brinde.

– A eles!

– Quem?

– Aos espermatozoides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!

– Aos meus irmãos!

– Meus irmãos. Você não estava lá.

– Aos seus irmãos!

– Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.

– Salve.

– Agora me diga uma coisa.

– Duas. Digo duas.

– Cada espermatozoide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozoide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?

– Depende.

– Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras ideias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?

– Não vamos exagerar...

– Então, imagina o seguinte. Pense bem. Amendoim.

– Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.

– Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozoides que me acompanharam, e que não chegara ao óvulo, estava o cara que ia descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?

– Certo.

Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou podia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.

– Acho que você está sendo radical.

– Não. Imagine se em vez do espermatozoide que se transformou no Jânio Quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil seria completamente diferente! É ou não é?

– Mais ou menos.

– Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu devia, sei lá.

– Ter feito mais da minha vida. Em honra a eles. Eu estou representando milhões, bilhões de espermatozoides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?

– E se fosse um bandido?

– Como?

– Se, em vez de você, o espermatozoide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caráter. Não quero falar dos espermatozoides do seu pai, mas num grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maça negra. Estatisticamente.

– Você acha mesmo?

– Acho.

– Sei lá.

– E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.

– Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...

– Marco Antônio...

– Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?

– Bom, eu tenho 11 irmãos.

– Aí é diferente.

– Por quê?

– Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozoides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?

– É uísque.

– Não. É a gratuidade da coisa.

Não sei...

– Você está bêbado.

Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto Alegre, 1982, pág. 19-22.

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