terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Saudade?


Hoje faz cinco meses que meu pai faleceu. Talvez esta não seja a palavra certa ou a mais adequada para definir ausência, mas ele nos deixou a todos nós: esposa, filhos, netos, bisnetos, amigos, alunos...

Foram décadas de convivência e de ensinamos que formaram e forjaram minha personalidade. Foi com ele o primeiro episódio de frustração da minha vida – uma experiência que me modificou completamente e que me fez buscar os porquês das coisas. Foi com ele que aprendi a ser franco, falando o que penso e não o que as pessoas gostariam de ouvir – essa característica, é verdade, fecha muitas portas, mas quem liga para portas num mundo cheio de janelas! Ele foi o meu mestre. E o será sempre.

Depois da separação, ainda não havia conseguido, apesar de diversas tentativas infrutíferas, escrever nenhuma palavra sobre meu pai. Não consegui externar nenhuma das qualidades dele, nenhum dos nossos momentos, somente nosso, de pai e filho e todas as vezes que me propunha a tentar, um clarão se abria diante da tela e a escuridão preenchia as lacunas visíveis da minha imaginação.

Ao pensar no meu pai eu não me lembrava da infância que tive. Eu não me lembrava dos sorrisos trocados com ele, das festas em família... Não conseguia sequer sentir saudade! Um torpor me apertava o peito. Lágrimas percorriam minha face, banhando vorazmente meu semblante pálido e insulso. E minha alma também era escuridão e trevas de ressentimento.

Há cinco meses, numa manhã de quarta-feira, recebia a notícia da partida do meu pai: ‘Ele foi submetido a uma hemodiálise e não suportou... ’ – Foi com essas palavras que meu irmão me deu a notícia.

Ouvi em seco. Chorei. Desliguei o telefone e liguei, incontinenti, pra minha mãe. Ao ouvir o meu ‘Oi, mãe!’, cessou-se o verbo e o silêncio foi o modo que utilizamos para externar a dor que nos invadia. Lágrimas não falam ao telefone! O pulsar de corações apertados e corroídos pela dor da separação não pode ser ouvido através dos satélites – evoluímos, mas, felizmente, ainda sentimos as mesmas manifestações animalescas dos nossos antepassados, apesar de o tempo nunca parar dentro da nossa visão Newtoniana de espaço-tempo.

Segundos depois, um desabafo do outro lado da linda: ‘– Ele falou que só morreria com cem anos!’

Ah, vida! Por que não podemos esboçar cada uma de nossas etapas, escolhendo um final previsível no tempo?

Enquanto as lágrimas inundavam meu corpo; enquanto ouvia distante as palavras e os lamentos da minha mãe, reiteradas vezes uma série de perguntas óbvias me incomodava, num apelo cíclico de egoísmo: ‘Como viver sem o meu pai?’ ‘Como ficaremos sem ele?’ Minha pequenez e imperfeição humana não me permitiram mudar o ângulo de visada e perguntar ‘como ele ficaria sem nós! Somos imperfeitos, mesquinhos... E tão soberbos também!

Morando longe dos meus pais há 4 anos, preparei-me para o retorno à casa paterna em mais uma dentre tantas idas e vindas, pendulando entre a capital e o interior.

No caminho, a cada cidade que ficava para trás, a angústia aumentava. Nunca tinha sido tão difícil voltar pra casa... Nos últimos anos, sempre encontrava meu velho deitadinho ou sentado ou comendo ou andando com dificuldade pela casa, mas o encontrava, apesar de fraco e debilitado, eu o encontrava vivo. Agora eu o encontraria desfalecido.

‘Será que puseram o travesseiro embaixo da cabeça dele, como ele sempre pedia?’ ‘Será que estava tudo bem acolchoado, como ele desejara?’ Ele sempre rejeitou um féretro luxuoso, mas não abria mão do conforto para a cabeça: ‘Deve doer demais ficar deitado o tempo todo na mesma posição’! – dizia sempre ele, meu pai, ao falar da morte.

Os velórios, com pessoas metralhando palavras prontas em ladainhas cansativas e intermináveis nunca me apeteceram o espírito. Os sermões dos padres durante as missas de corpo presente (espírito ausente?) também não me enchiam os olhos de encantamento. Entretanto, uma pregação em especial me burilou as ideias, quando um padre amigo meu, ao ‘encomendar’ a alma de um defunto, fez a seguinte representação alegórica entre o nascimento e a partida, dizendo: ‘Quando nascemos todos sorriem, mas chegamos ao mundo chorando. Na partida, entretanto, enquanto todos choram, partimos felizes, sorrindo... ’ Se aquilo fosse mesmo uma verdade, por que sofrer nessas horas? Por que não se alegrar com a felicidade que se tornará eterna na finitude das passagens e revisitações a este mundo de provas e expiações?

A menos de duas horas de casa, lembrei de um de nossos últimos diálogos:

– Papai, o senhor está cansado, não está? Hein, meu velho?

– Estou, meu filho!

– Quer desistir, papai? Desistir da vida?

– Não! Queria era ficar bom... Está demorando muito. Estou cansado. Só queria ficar bom.

Ouvir do meu velho, um homem durão e lunduzeiro, um apelo desses, surpreendeu-me completamente. Tentei disfarçar as lágrimas que de mim brotaram, ainda dentro do carro, mas o pigarro me denunciou. Minha esposa me olhou, talvez até tenha visto as lágrimas descerem pelo meu rosto através do reflexo das luzes dos postes que nos perseguiam desde o início da viagem, mas permaneceu calada.

Nos três anos de enfermidade somente numa ocasião meu pai reclamou da sorte. Depois de ter sido banhado por um sobrinho, ele caiu. Machucou os joelhos. Meu primo o ergueu e nova queda se seguiu. Então meu pai, ao limpar o sangue que escorria pelos joelhos enfraquecidos, rogou a Deus: ‘Senhor, tende piedade de mim!’

No restante da caminhada ele apenas sofria resignadamente. E foi assim até o derradeiro dia.

Por que, então, não sentir saudade? Por que olvidar parte da minha infância e muitos dos meus momentos com meu pai? Por que esse sentimento de culpa e de ingratidão que me invadem sempre que busco, nas minhas reminiscências, uma aproximação com ele?

– Filho!

– Quem é?

– Sou eu, seu Pai...

(Pausa pra chorar – as lágrimas e os soluços forçaram-me parar. Perdão!)

– Não me busque tanto na ausência. Estou presente e estarei sempre.

– Pai, faz tão pouco tempo e parece uma eternidade dentro de mim...

– Na realidade, meu filho, você precisa aceitar que ele partiu assim como ele já aceitou.

– Pai?

– Sim, filho... Sou Eu, O Pai.

O tempo pareceu colapsar. Dentro de mim, as angústias se tornaram esperança e hoje tenho uma certeza: a de que fez cinco meses que meu pai faleceu.

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 05 de janeiro de 2009.

10h53min



Ao pensar no meu pai eu não me lembrava da infância que tive. Eu não me lembrava dos sorrisos trocados com ele, das festas em família... Não conseguia sequer sentir saudade! Um torpor me apertava o peito. Lágrimas percorriam minha face, banhando vorazmente meu semblante pálido e insulso. E minha alma também era escuridão e trevas de ressentimento.

Há cinco meses, numa manhã de quarta-feira, recebia a notícia da partida do meu pai: ‘Ele foi submetido a uma hemodiálise e não suportou... ’ – Foi com essas palavras que meu irmão me deu a notícia.

Ouvi em seco. Chorei. Desliguei o telefone e liguei, incontinenti, pra minha mãe. Ao ouvir o meu ‘Oi, mãe!’, cessou-se o verbo e o silêncio foi o modo que utilizamos para externar a dor que nos invadia. Lágrimas não falam ao telefone! O pulsar de corações apertados e corroídos pela dor da separação não pode ser ouvido através dos satélites – evoluímos, mas, felizmente, ainda sentimos as mesmas manifestações animalescas dos nossos antepassados, apesar de o tempo nunca parar dentro da nossa visão Newtoniana de espaço-tempo.

Segundos depois, um desabafo do outro lado da linda: ‘– Ele falou que só morreria com cem anos!’

Ah, vida! Por que não podemos esboçar cada uma de nossas etapas, escolhendo um final previsível no tempo?

Enquanto as lágrimas inundavam meu corpo; enquanto ouvia distante as palavras e os lamentos da minha mãe, reiteradas vezes uma série de perguntas óbvias me incomodava, num apelo cíclico de egoísmo: ‘Como viver sem o meu pai?’ ‘Como ficaremos sem ele?’ Minha pequenez e imperfeição humana não me permitiram mudar o ângulo de visada e perguntar ‘como ele ficaria sem nós! Somos imperfeitos, mesquinhos... E tão soberbos também!

Morando longe dos meus pais há 4 anos, preparei-me para o retorno à casa paterna em mais uma dentre tantas idas e vindas, pendulando entre a capital e o interior.

No caminho, a cada cidade que ficava para trás, a angústia aumentava. Nunca tinha sido tão difícil voltar pra casa... Nos últimos anos, sempre encontrava meu velho deitadinho ou sentado ou comendo ou andando com dificuldade pela casa, mas o encontrava, apesar de fraco e debilitado, eu o encontrava vivo. Agora eu o encontraria desfalecido.

‘Será que puseram o travesseiro embaixo da cabeça dele, como ele sempre pedia?’ ‘Será que estava tudo bem acolchoado, como ele desejara?’ Ele sempre rejeitou um féretro luxuoso, mas não abria mão do conforto para a cabeça: ‘Deve doer demais ficar deitado o tempo todo na mesma posição’! – dizia sempre ele, meu pai, ao falar da morte.

Os velórios, com pessoas metralhando palavras prontas em ladainhas cansativas e intermináveis nunca me apeteceram o espírito. Os sermões dos padres durante as missas de corpo presente (espírito ausente?) também não me enchiam os olhos de encantamento. Entretanto, uma pregação em especial me burilou as ideias, quando um padre amigo meu, ao ‘encomendar’ a alma de um defunto, fez a seguinte representação alegórica entre o nascimento e a partida, dizendo: ‘Quando nascemos todos sorriem, mas chegamos ao mundo chorando. Na partida, entretanto, enquanto todos choram, partimos felizes, sorrindo... ’ Se aquilo fosse mesmo uma verdade, por que sofrer nessas horas? Por que não se alegrar com a felicidade que se tornará eterna na finitude das passagens e revisitações a este mundo de provas e expiações?

A menos de duas horas de casa, lembrei de um de nossos últimos diálogos:

– Papai, o senhor está cansado, não está? Hein, meu velho?

– Estou, meu filho!

– Quer desistir, papai? Desistir da vida?

– Não! Queria era ficar bom... Está demorando muito. Estou cansado. Só queria ficar bom.

Ouvir do meu velho, um homem durão e lunduzeiro, um apelo desses, surpreendeu-me completamente. Tentei disfarçar as lágrimas que de mim brotaram, ainda dentro do carro, mas o pigarro me denunciou. Minha esposa me olhou, talvez até tenha visto as lágrimas descerem pelo meu rosto através do reflexo das luzes dos postes que nos perseguiam desde o início da viagem, mas permaneceu calada.

Nos três anos de enfermidade somente numa ocasião meu pai reclamou da sorte. Depois de ter sido banhado por um sobrinho, ele caiu. Machucou os joelhos. Meu primo o ergueu e nova queda se seguiu. Então meu pai, ao limpar o sangue que escorria pelos joelhos enfraquecidos, rogou a Deus: ‘Senhor, tende piedade de mim!’

No restante da caminhada ele apenas sofria resignadamente. E foi assim até o derradeiro dia.

Por que, então, não sentir saudade? Por que olvidar parte da minha infância e muitos dos meus momentos com meu pai? Por que esse sentimento de culpa e de ingratidão que me invadem sempre que busco, nas minhas reminiscências, uma aproximação com ele?

– Filho!

– Quem é?

– Sou eu, seu Pai...

(Pausa pra chorar – as lágrimas e os soluços forçaram-me parar. Perdão!)

– Não me busque tanto na ausência. Estou presente e estarei sempre.

– Pai, faz tão pouco tempo e parece uma eternidade dentro de mim...

– Na realidade, meu filho, você precisa aceitar que ele partiu assim como ele já aceitou.

– Pai?

– Sim, filho... Sou Eu, O Pai.

O tempo pareceu colapsar. Dentro de mim, as angústias se tornaram esperança e hoje tenho uma certeza: a de que fez cinco meses que meu pai faleceu.

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 05 de janeiro de 2009.
10h53min

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